A decepção é o clímax que paira sobre os dois discípulos. Tristeza e outros sentimentos são decorrentes dessa primeira fundamental sensação de sentirem-se como que traídos por Deus, por aquele Deus no qual haviam depositado suas expectativas, no qual haviam confiado, sabendo dos grandes gestos do passado, um passado glorioso no qual Jahvé havia mostrado o seu poder diante de todas as nações. Como não imaginar que em seus corações não se encarnasse a mesma decepção do salmista quando escreveu: «De noite indago o meu íntimo e o meu espírito perscruta. Será que o Senhor nos rejeitou para sempre? Não será mais propício conosco? A sua promessa, afinal, terá falhado? ... Esta é a minha aflição: mudou a destra do Altíssimo.» (Salmo 77). Essa sensação de fracasso, da insuficiência de Deus diante do extrapoder dos fortes, da fragilidade da fé que parece revelar-se como um conjunto de ilusões, essa sensação é um sentimento que sempre estará vivo entre os que foram capazes de aderir a Deus mesmo que por um só momento. A comunidade conviverá sempre com essa sensação. Sempre, as coisas de Deus parecem “capengar”, “agoniar” (permito-me usar uma expressão do Papa Bento XVI). Diante disso, as pessoas da comunidade poderão sempre escolher como agir: permanecer ou procurar outro caminho.
Os dois haviam escolhido o outro caminho, contrariamente aos onze que, mesmo vivendo os mesmos sentimentos deles, continuavam «reunidos». Que caminho haviam escolhido? Emaús era uma aldeia-símbolo: ali Judas Macabeu, 166 anos antes de Cristo, derrotou Gorgia, o grande general do rei Antíoco, (1Mac 3-4) o qual havia imposto a Israel a religião e os costumes gregos, sufocando no sangue as tradições e a religiosidade dos judeus. E mais, ali, no ano 4 a.C., Athrongius comandou uma revolta contra os romanos com todas as características messiânicas. É lícito supor que aquele Bar-abbas (“Filho do Pai”, nome de batalha messiânico) que a multidão escolheu em lugar de Jesus, tivesse participado da mesma revolta. Eis então a decisão a ser tomada: continuamos com Deus e com a sua lógica incompreensível, que não parece surtir efeitos, que não muda nada ou...? Esse era o objeto da conversa e discussão entre os dois. Conversavam, discutiam, mas, bem no fundo, já haviam feito a própria escolha... Ainda uma vez: Jesus ou Bar-abbas? A lógica de Deus ou a lógica humana?
Voltar a Emaús significa escolher “agir” onde Deus parece fracassar.
É a tentação de construir com as nossas mãos o nosso mundo já que Deus parece não resolver os nossos problemas de fome, guerras, injustiças, violência contra a dignidade da pessoa humana. É a tentação da proposta do homem em contraposição ao agir de Deus: já que Deus não resolve os nossos problemas com os seus projetos e caminhos, então faremos nós, de outro modo, do nosso jeito. É um messianismo que reaparece ciclicamente em muitas épocas da nossa história, sob as formas mais mistificadas.
Emaús era a tentação dos dois e de todos os discípulos que veem o aparente insucesso de Deus como a justificativa para substituir-se a Ele, mesmo com o intento de “fazer o bem”, esquecendo que para Deus o resultado é insignificante, o que conta é o processo e o que acontece durante o processo para alcançar uma meta. Como os dois pensavam, hoje, podemos nós também dizer: “Afinal, o que Jesus trouxe, se o mundo novo que prometeu não aconteceu, se as pessoas continuam se matando, se o interesse particular continua sendo a norma de tudo, se o Estado ainda se impõe com a sua injustiça “justificada” e formalizada...?”. “Façamos com as nossas mãos e deixemos que Deus fique lá onde está! Nós sabemos o que é bom para nós”. Essa é a tentação de sempre. Mas, realmente, sabemos o que é bom para nós? Qual é um “bom” universal e permanente e qual é o “meu bom” agora, deste momento e aqui? Quais foram os grandes resultados prognosticados pela Revolução Francesa que se apresentava como uma mudança radical de liberdade para a humanidade inteira? Ou as “grandes” revoluções, como a Industrial, a Bolchevista, a Maoísta, a Capitalista, a da New Age...? Foram realmente capazes de trazer mais felicidade ao homem, que deve percorrer passo a passo o caminho da sua existência? Ou foram desculpas para substituir um poder por outro?
A tentação do messianismo bate sempre às portas e convive com a pessoa que não vê, mas quer resultados imediatos, com a pessoa cujos olhos são «como que cegos», do mesmo modo que os dois discípulos. Pessoas que andam, andam, discutem, usam até as Escrituras, encontram nelas certo «calor», mas não conseguem dar um passo além, não são capazes de ver que, dentro da realidade que experimentam, existe já uma outra que caminha lado a lado, capaz de preencher o vazio que sentem. Enquanto discutiam não ouviam, não viam.
Discutir é sempre mais fácil que ouvir e contemplar.
Perceber e sentir a nova maneira como o Ressuscitado está vivendo com a comunidade para a qual se dedicou sem limites não é algo tão óbvio.
Contudo, mesmo que vencidos pela tentação, Jesus não permite que a sua comunidade se perca, decide ficar até o fim, dar ainda a sua vida na comunhão e na fração do pão. Decide responder à última possibilidade que os discípulos ainda têm, assim como a tem qualquer pessoa, mesmo que esmagada pela decepção e pelo sofrimento. Sempre, qualquer um de nós pode pedir: «Fica conosco», “fica comigo no meu vazio, na minha solidão. Senhor, fica comigo quando a vida parece não ter mais sentido. Fica comigo.”
... E «Jesus entrou, para ficar com eles», para ficar conosco para sempre, em cada momento, partindo o pão da “consolação”, o pão que, segundo Jeremias, é destinado àquele que fica sozinho, que sente medo do futuro, que não encontra mais em si a força para continuar. «E eles reconheceram Jesus» ao partir o pão do amor que não deixa ninguém desamparado.
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